A Missa de Nossa Senhora da Conceição, do padre José Maurício Nunes Garcia, marcou o início de um ano que promete ser especial para o maestro Roberto Minczuk. A peça do principal compositor colonial brasileiro abriu, no último dia 6 de março, a temporada da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), que neste ano leva aos palcos do Rio de Janeiro um elenco de atrações internacionais como há muito não se via na cidade.
Entre elas, o maestro alemão Kurt Masur, a cantora americana Kathleen Battle, o violinista russo Boris Belkin, o bandoneonista argentino Daniel Binelli, o violoncelista brasileiro Antonio Meneses e o prodígio do piano Peng Peng, um chinês de apenas 12 anos.
É um espanto quando se pensa que há três anos a OSB, que já foi a mais importante do Brasil, estava totalmente sucateada. Desde a chegada de Minczuk — ou Roberto, como é conhecido no meio musical e como de agora em diante será tratado nesta reportagem —, a orquestra renovou seu quadro de músicos , quadruplicou o orçamento e voltou a tocar bem. Voraz, o regente não pretende parar por aí.
Ele quer também inaugurar neste ano aquela que seria a "casa" da OSB, a Cidade da Música — um complexo de 95 mil metros quadrados, no bairro da Barra da Tijuca, com duas salas de concerto, uma para 1.800 e outra para 800 espectadores.
Acaba de assumir, também, o Teatro Municipal da cidade, onde pretende realizar um velho sonho: dirigir ópera. A Missa de Nossa Senhora da Conceição, composta em 1810, foi um aperitivo. "Recém-chegado ao Brasil, dom João 6o tinha gosto operístico e queria ouvir uma missa cujos solos tivessem a grandeza do teatro lírico", diz Roberto.
O elenco de cantores reunidos para o concerto de estréia (que deverá ser lançado em CD) tinha alguns dos melhores intérpretes do país e bem pode ser um embrião da companhia de ópera que Roberto quer implantar em terras cariocas: o barítono Homero Velho, o tenor Fernando Portari, a soprano Rosana Lamosa e a contralto Adriana Clis. Uma missa.
Talvez não seja acaso o fato de Roberto ter escolhido a peça do padre José Maurício para abrir a temporada. Dentre os traços da personalidade do maestro, um se destaca: a profunda religiosidade. Peça a ele que conte a própria vida, e ela será descrita como uma seqüência de milagres.
A começar pelo dom musical que apresenta desde a infância. Nos anos 60, o sargento da Polícia Militar José Minczuk, um apaixonado por música, queria que seus oito filhos tivessem formação na área. Ele próprio regia o coral da Assembléia de Deus Russa, igreja protestante situada na Vila Prudente, bairro de classe média que abrigava a colônia eslava em São Paulo. Roberto se destacava entre os irmãos.
Aos 9 anos, ao ouvir uma peça intrincada de Bach, o menino de ascendência bielorussa era capaz de passar para a partitura todas as vozes e instrumentos — algo que um maestro profi ssional só consegue depois de muitos anos de treino.
Com 12 anos, ele já tocava trompa na Orquestra Sinfônica Juvenil do Estado de São Paulo. Seu regente na ocasião era um jovem de enorme talento, um músico que, para o bem e para o mal, iria marcar sua vida no futuro: John Neschling.
Nessa época, Roberto viu numa revista a foto de uma moça tocando violino na Quinta Avenida, em Nova York. "Na legenda, estava escrito que ela estudava na Juilliard School. Imediatamente eu pensei: 'Que bom seria se um dia eu pudesse morar num lugar tão bonito quanto Nova York e estudar numa escola tão boa como deve ser essa tal de Juilliard'", lembra Roberto. "Então, eu rezei." Dois anos mais tarde, num ensaio, ele viu um músico desconhecido. Perguntou quem era. "É o diretor da Juilliard School", disseram.
Nada tímido — desde pequeno, Roberto é do tipo que corre atrás do que quer —, solicitou uma audição para o diretor da Juilliard, uma das escolas de música mais seletivas do mundo. Ganhou bolsa integral e embarcou para a cidade que só conhecia de fotografia.
Esta é uma maneira de narrar a trajetória de Roberto. Outra é contar a sua história por meio dos músicos que ele teve como modelos e que, de certa maneira, o ajudaram a chegar até o momento atual. "A carreira de Roberto é marcada por uma valorização da figura paterna", diz um dos melhores amigos do maestro, o psicanalista Jorge Forbes.
Quando falou em "angústia da influência", a compulsão de todo artista de aprender com seus mestres e tentar superá-los, o crítico americano Harold Bloom estava pensando em escritores. Sua teoria de corte psicanalítico é especialmente válida para maestros. O lendário Herbert von Karajan surge da necessidade de superar outra lenda, Wilhelm Furtwängler.
Hans von Bülow, o primeiro regente profissional da história, descende do compositor Richard Wagner e sua maneira peculiar de dirigir as próprias peças. O russo Sergei Koussevitzky, mítico diretor da Sinfônica de Boston, deu aulas ao americano Leonard Bernstein e ao brasileiro Eleazar de Carvalho, maior maestro brasileiro em todos os tempos. É dessa linhagem — Koussevitzky, Bernstein, Eleazar — que Roberto descende.
Leonard Bernstein e a orquestra americana á sombra do corcovado
A carreira de Roberto tem dois momentos capitais. O primeiro foi a audição que o levou à Juilliard. O segundo foi o concurso que, em 1997, fez dele regente associado da Orquestra Filarmônica de Nova York, abrindo-lhe as portas de uma carreira internacional.
Quem o estimulou a fazer o concurso foi o maestro Kurt Masur, com quem Roberto havia atuado como trompista em Leipzig e que, na ocasião, estava à frente da orquestra americana. Seria sorteada uma peça que cada candidato (eram seis) teria que reger na hora.
O que apresentasse maior química com o conjunto levaria a vaga. Na ocasião, Roberto rezou para que não caísse Brahms. Àquela altura, considerava as sinfonias do compositor alemão muito difíceis. Caiu a abertura da ópera Candide, de Leonard Bernstein.
Justo Bernstein, que havia sido regente da Filarmônica de Nova York nos anos 60 e 70. "Vários daqueles músicos à minha frente haviam tocado com o autor da peça", lembra Roberto. Ele encarou o desafio. Ao fim da execução, foi aplaudido. E ganhou o concurso. Roberto encarna hoje, no Brasil, o perfil do regente do século 21, que tem como precursor justamente Bernstein.
O músico americano achava que um diretor de orquestra não pode apenas reger. Ele tem que ser empreendedor, abrindo oportunidades de negócio que permitam ao conjunto se libertar da tutela estatal. E também carismático, uma espécie de intermediário entre a música e o grande público interessado em concertos.
As apresentações vulcânicas de Bernstein no Central Park marcaram época em Nova York, e o maestro fez escola. Bernstein foi um visionário. Hoje, todos os regentes de orquestras importantes fazem concertos populares, se preocupam com a divulgação da música erudita e ajudam seus conjuntos a captar patrocínio.
Quando regia a Gewandhaus de Leipzig, Kurt Masur era tão popular que os fãs queriam sua candidatura à Presidência da Alemanha unificada. Quando brigavam pela vaga de regente da Filarmônica de Berlim, Daniel Barenboim e Simon Rattle acenaram aos músicos com um mesmo argumento — trariam novos patrocinadores.
Nos Estados Unidos, onde a maior parte das orquestras é sustentada pela iniciativa privada, esse tipo de atuação é especialmente importante. Roberto, que viveu lá, sabe disso. Ele quer fazer da OSB uma espécie de orquestra americana à sombra do Corcovado.
Entre os grandes conjuntos sinfônicos brasileiros, a OSB é a que menos depende de patrocínio estatal. Oitenta por cento de seus recursos vêm da iniciativa privada. Para efeito de comparação, a mais rica orquestra brasileira, a Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), sobrevive principalmente graças ao Estado, que garante 75% de seu orçamento.
Para implantar o esquema de captação de recursos da OSB, Roberto contratou exatamente Ricardo Levisky, o antigo diretor de marketing da Osesp. "As orquestras brasileiras não se profi ssionalizaram na gestão. Ou são financiadas apenas pelo poder público ou por uma ou duas grandes empresas", avalia Levisky. "Nós implantamos aqui na OSB um modelo diferente, que não depende de uma única fonte de renda."
A OSB hoje tem 19 empresas patrocinadoras. De um orçamento de R$ 7 milhões em 2005, pulou para R$ 27 milhões em 2008. Ainda está longe dos R$ 53 milhões a nuais da Osesp. "Dado que começamos a captar há apenas dois anos, estamos no caminho", diz Levisky.
Roberto segue o estilo de Bernstein também no capítulo carisma. Faz questão de conduzir ele próprio os chamados "concertos didáticos" da OSB. Nessas ocasiões, como Bernstein, Roberto rege de roupa informal. Nas ruas do Rio, é freqüentemente parado para dar autógrafos. Como um popstar, anda pela cidade de óculos escuros. É sua peça de vestuário favorita. Tem uma coleção deles.
Eleazar de Carvalho e a brincadeira de reger
Eleazar é o maestro brasileiro que mais regeu orquestras importantes no mundo, entre elas a Filarmônica de Berlim. Com 41 anos, idade em que um regente ainda é bastante jovem, Roberto — que foi aluno de regência de Eleazar — já é o segundo nessa estatística, o que o coloca na posição de mais promissor entre os regentes brasileiros.
Das chamadas "Big Five", as cinco grandes orquestras dos Estados Unidos, ele já esteve à frente da Filarmônica de Nova York, da Sinfônica de Filadélfia e da Sinfônica de Cleveland, faltando apenas Boston e Chicago para completar o ciclo. Entre as grandes orquestras européias, esteve à frente da Filarmônica de Londres e da Orquestra Nacional da França.
Regeu também a Filarmônica de Israel, conjunto que se alinha entre os dez melhores do mundo. Roberto se vê, de certa forma, como continuador da obra de Eleazar. Eleazar foi regente da OSB, que Roberto dirige hoje. Eleazar esteve à frente do Festival de Inverno de Campos do Jordão, do qual Roberto hoje é diretor artístico.
Seguindo os passos de seu antecessor, Roberto reproduz em Campos o modelo do Festival de Tanglewood, nos Estados Unidos, no qual professores formam com os alunos a orquestra de bolsistas — e esse contato turbina o resultado didático. Por fim, Eleazar fez parte de sua carreira nos Estados Unidos, onde foi regente titular da Sinfônica de Saint Louis, entre 1965 e 1969.
Roberto foi regente associado da Filarmônica de Nova York e sonha em dirigir, um dia, uma orquestra americana. Segundo a mulher do maestro, Valéria, não é por acaso que os quatro filhos do casal, Natalie, Rebecca, Joshua e Julia, têm nomes que funcionam em português e em inglês.
Roberto rege com freqüência orquestras americanas como convidado, entre elas a de Saint Louis. Sempre que dirige o conjunto que teve Eleazar como maestro, ouve dos músicos veteranos histórias do velho mestre. Bom contador de "causos", ele narra essas anedotas com verve. "Eleazar era antes de tudo um brincalhão", diz. "Alguém para quem a música era um grande divertimento."
Os músicos de Saint Louis se lembram de um dia em que havia um solo de tuba em uma das peças, e Eleazar — originalmente um tubista — regeu de frente para o solista, em seu tradicional estilo emocionado, que incluía batidinhas com o punho fechado sobre o coração. Depois do concerto, o tubista o interpelou e disse: "Maestro, é uma honra tocar com o senhor tão concentrado na minha atuação, mas eu fico nervoso. Eu ficaria mais relaxado se o senhor não olhasse para mim na hora do solo". "Perfeitamente", respondeu Eleazar.
No concerto seguinte, no mesmo trecho, o maestro brasileiro deu a entrada, virou-se para o músico e... tapou o rosto com a mão esquerda, fazendo com que a orquestra inteira caísse na risada. A capacidade de se divertir durante o exigente trabalho com uma orquestra é um ponto em comum entre Roberto e Eleazar.
No intervalo de um ensaio da Missa de Nossa Senhora da Conceição, do padre José Maurício, Roberto foi falar com o tenor Fernando Portari, que conversava com um amigo na platéia. "Você viu aquele trecho? Lá, lá, lá, laiá, laiá", cantarolou. "É Mozart puro, mas é também música brasileira." "É isso mesmo", respondeu Portari. "É Mozart misturado com lundu."
Momentos mais tarde, durante a segunda parte do ensaio da primeira apresentação da OSB do ano, Portari entoou o trecho rindo — e Roberto, sem perder a concentração, devolveu a risada. Uma das características de Roberto que mais chamam a atenção dos freqüentadores da Sala Cecília Meireles, sede provisória da OSB no Rio de Janeiro, é que ele dirige a orquestra sorrindo. "A relação de Roberto com a música é principalmente lúdica", diz o tenor Fernando Portari.
"Na orquestra, ele é uma criança entre crianças, todos com a mesma brincadeira, que é a música. Apesar da inevitável relação de hierarquia, os instrumentistas percebem isso, e vem daí sua cumplicidade com a orquestra."
John Neschling, paixão e rompimento
"Ele era como um pai para mim. Sempre admirei sua cultura, seu conhecimento do repertório", diz Roberto de John Neschling. "Ele era como um filho para mim. Quando eu o vi reger pela primeira vez, fiquei impressionado com seu talento e resolvi adotá-lo", diz Neschling de Roberto.
Pai e filho não se falam desde abril de 2005, quando Roberto encerrou seu vínculo com a Osesp, orquestra da qual até hoje Neschling é diretor artístico. O rompimento se deu ao som da Paixão Segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach, a peça que rivaliza com a Nona Sinfonia de Beethoven nas discussões sobre qual é a maior obra-prima da história da música.
As circunstâncias do rompimento eram, até recentemente, um tabu no meio musical brasileiro. Em entrevista à repórter Paula Nadal, o psiquiatra Jorge Forbes, amigo de Roberto, foi o primeiro a quebrar o silêncio em torno do tema, narrando o que aconteceu naquela fatídica noite de abril.
"Era magnífico. Havia mais de 200 pessoas no palco, entre orquestra, coro masculino, coro feminino, coro infantil. Eu, Roberto e nossas respectivas mulheres havíamos combinado de jantar depois da apresentação. No intervalo do concerto, o celular tocou. Era Valéria, mulher de Roberto.
Ela ligou para cancelar o jantar, pois Roberto estava transtornado. Ele tinha recebido a notícia de que seria demitido da Osesp naquela noite. Fui ao camarim falar com Roberto. Precisava acalmá-lo, até mesmo porque ele tinha que terminar de reger o concerto. Foi uma das experiências mais repugnantes que já tive. Lembrei-me daquele filme do Andrzej Wajda, O Maestro, que conta a história de dois regentes, um apaixonado pela música e outro apaixonado pelo dinheiro que a música poderia dar.
Era uma situação inacreditável. Demitir um maestro no meio de um concerto era como o diretor de um hospital demitir um médico no meio de uma cirurgia. Antes de falar com Roberto, liguei para um amigo advogado. Ele disse que o maestro não deveria assinar nenhum papel.
Fui ao camarim e dei essa instrução a ele. Mais calmo, Roberto voltou e regeu o concerto. Ao final, estávamos os quatro no camarim, nós e nossas esposas. Bateram na porta. Era uma senhora da administração da orquestra, acompanhada de um advogado. Ela entrou no camarim e disse: 'Maestro, o senhor pode assinar aqui?'. Eu me dirigi ao advogado. 'O maestro não vai assinar.'
Acho que ele achou que eu era o advogado de Roberto, pois na ocasião eu usava um terno. Os emissários da orquestra saíram. E nós quatro explodimos numa gargalhada angustiada."
Neschling e Roberto têm versões diferentes sobre as circunstâncias que levaram à cena descrita por Forbes. Antes de conhecê-las, no entanto, é necessário dar a exata medida da importância dos dois maestros para a música erudita brasileira. Durante oito anos,
Neschling, como diretor artístico, e Roberto, como diretor artístico adjunto, criaram e dirigiram a melhor orquestra brasileira de todos os tempos, a primeira a obter algum reconhecimento internacional. São dois enormes talentos, e complementares. Neschling, segundo o próprio Roberto, é um maestro cultíssimo e um excelente programador de repertório — capacidade que os paulistanos que fruem a programação variadíssima da Sala São Paulo conhecem de sobra.
Roberto, segundo o próprio Neschling, é um regente de técnica apurada e um músico de primeiríssima linha. Talvez a Osesp — que continua sendo a melhor orquestra brasileira — fosse pequena demais para dois músicos com brilho e carreira próprios. Neschling não fala publicamente sobre o rompimento.
A amigos, disse que a cena no camarim da Paixão Segundo São Mateus foi necessária porque o advogado da orquestra havia procurado Roberto em casa várias vezes, mas não o havia encontrado. E que o desgaste em sua relação com Roberto havia começado bem antes, em 1999 — justamente quando Roberto iniciou seu período como regente associado da Filarmônica de Nova York.
Neschling comenta entre seus amigos que Roberto, por conta de suas freqüentes viagens, aparecia cada vez menos na orquestra. "Na prática, eu fiquei assoberbado, tendo que fazer tudo sozinho" — essa era uma queixa comum de Neschling na época, segundo seus amigos.
O desgaste se agravou em 2004, quando Roberto foi convidado para ser diretor do Festival de Inverno de Campos do Jordão e aceitou sem consultá-lo. "Conversamos em minha casa a este respeito e manifestei meu desagrado por ele ter assumido mais um compromisso alheio à Osesp, num momento em que seu trabalho na orquestra já era deficiente. Ainda assim, eu o apoiei", disse Neschling a seus amigos.
Pouco tempo mais tarde, Neschling passou a desconfiar que Roberto queria ficar com o seu cargo na Osesp. A suspeita surgiu quando voltou de uma viagem ao exterior e o presidente da associação dos músicos da orquestra veio falar com ele. A secretária de Cultura do Estado na época, Claudia Costin, havia procurado a associação dizendo que estava preocupada com o fim do contrato de Neschling e que talvez fosse a hora de trocar de regente na Osesp.
Por fim, Neschling relatou a amigos ter recebido um telefonema de uma pessoa ligada a Claudia Costin, dizendo que estava tudo acertado para que Roberto assumisse o posto de regente titular da Osesp, inclusive o salário. (Ouvida por BRAVO!, Claudia Costin negou ter oferecido o cargo de diretor da Osesp a Roberto.) O estopim para a ruptura veio um pouco depois. Uma reportagem publicada por O Estado de S. Paulo, escrita pelo jornalista Daniel Piza, dizia que os músicos da Osesp preferiam Roberto a Neschling.
Neschling teria pedido a Roberto uma carta pública em que ele se mostrasse alinhado ao projeto da Osesp. Roberto se negou a fazer isso. "A partir daí, não havia mais clima na orquestra para ele, nem clima para trabalharmos juntos", disse Neschling a amigos, às vésperas de Roberto receber o documento no camarim, após a Paixão Segundo São Mateus.
A versão de Roberto é diferente. "O que dói é que Neschling sabe que eu nunca o traí. Em 1997, após ter ganho o concurso da Filarmônica de Nova York, disse a ele que não poderia continuar na Osesp, pois queria me dedicar à minha carreira internacional.
Ele pediu que eu ficasse na orquestra, pois o diretor administrativo da Osesp tinha acabado de se demitir. Neschling me ofereceu o posto de diretor artístico adjunto e concordou que eu tivesse o tempo necessário para atender Nova York e convites internacionais.
Não foram poucas as vezes em que ele entrou em conflito com políticos ao longo de nossa permanência na orquestra, e nessas circunstâncias sempre se cogitava que eu o substituísse. Eu nunca aceitei por lealdade a ele, pois nunca me imaginei na Osesp sem o Neschling. Em 2003, quando surgiu uma polêmica em relação ao salário de Neschling, eu manifestei o meu apoio à renovação do seu contrato, num dos meus concertos na Sala São Paulo, e também enviei uma carta para a secretária da Cultura confirmando esse apoio.
Em relação a Campos do Jordão, eu fui convidado por Claudia Costin e falei com Neschling que queria muito assumir o festival, pois em sete anos de Osesp nenhum projeto tinha sido confiado à minha direção. Neschling foi contra, mas logo depois acertamos tudo numa conversa franca.
Ele foi a primeira pessoa que convidei para participar do festival e assumiu a classe de regência. Depois da matéria do Daniel Piza, escrevi ao Neschling pedindo um encontro para esclarecermos a situação. Sugeri uma entrevista coletiva com a presença dos dois, para respondermos a qualquer dúvida referente ao nosso relacionamento e ao nosso trabalho na Osesp.
Ele se negou a me receber e exigiu que eu me desculpasse publicamente pela reportagem. Fiquei muito triste com isso. Tínhamos um relacionamento de muito tempo, em que todas as divergências eram resolvidas em conversas de cinco minutos, olho no olho.
Lamento profundamente toda essa situação, sinto muita falta de nossa amizade e da grande parceria musical que tivemos." Os dois maestros se exaltam e se emocionam quando falam no rompimento — que, apesar de ter-se dado há três anos, ainda é uma questão mal resolvida para ambos. Para a música erudita brasileira, claro, o melhor seria que os regentes das mais tradicionais orquestras do país voltassem a se falar.
Kurt Masur, da paixão de Bach á alegria de Beethoven
Aos 18 anos, depois de terminar o curso de trompa na Juilliard, Roberto conseguiu seu primeiro emprego, na Orquestra Gewandhaus de Leipzig, uma das mais antigas e tradicionais da Europa. Foi uma experiência intensa.
A Alemanha Oriental dos anos 80 — ou seja, antes da queda do Muro de Berlim — não era um lugar propriamente fervilhante, como Nova York. Roberto lembra que os músicos tinham medo de falar em política nos ensaios, pois havia na orquestra, entre os próprios instrumentistas, informantes da Stasi, a polícia da ditadura comunista.
Sempre que a orquestra viajava em turnê pelo exterior, voltava menor, pois alguns músicos pediam asilo político no Ocidente. Roberto se recorda também de um dia em que foi visitar um colega que morava em Berlim Oriental, onde havia uma escola de música bem perto do Muro.
Da janela, dava para ver, do lado ocidental, o prédio da Filarmônica de Berlim. "Pensei que meu amigo, que sonhava em ver essa orquestra, nunca poderia fazer isso, enquanto eu, só por ter um passaporte brasileiro, teria essa liberdade." Quando tocava na Gewandhaus, Roberto observava atentamente os gestos firmes com os quais o maestro Kurt Masur conduzia a orquestra.
Nos ensaios, em vez de levar apenas as partes da trompa, aparecia com a orquestração completa, para tomar notas das indicações de Masur para os diferentes instrumentos. Ele diz que seu gestual claro de hoje é influência do maestro alemão. Depois de seis anos em Leipzig, Roberto voltou para o Brasil e para o coro da Assembléia de Deus Russa.
Foi lá que conheceu Valéria, com quem se casou. Ele tinha 24 anos, e ela, 19. Começou a trabalhar como regente, primeiro na Orquestra da Universidade de Brasília, depois na Sinfônica de Ribeirão Preto. Um dia, ele estava em sua casa na cidade do oeste paulista quando o telefone tocou. Era Masur.
Ele viria ao Brasil para reger e queria rever o antigo amigo. Roberto foi encontrá-lo em São Paulo, com uma fi ta de vídeo debaixo do braço. No quarto do hotel onde estava hospedado, Masur assistiu a uma gravação da Sinfônica de Ribeirão Preto, regida por Roberto, executando o segundo movimento da Oitava Sinfonia de Dvorák. Masur olhou para o brasileiro e disse: "Você é um maestro".
Roberto considera esse momento uma espécie de batismo de sua carreira. É inevitável encerrar esta reportagem com as duas grandes obras-primas da música erudita, a Paixão Segundo São Mateus, de Bach, e a Nona Sinfonia de Beethoven. Em Leipzig, solitário e deprimido, Roberto se consolava com um hobby: colecionar partituras fac-similares de obras de Johann Sebastian Bach. "Dizem que Mozart escrevia música sem rasuras nas partituras. Não é verdade. Quem escrevia assim era Bach."
Para provar, Roberto mostra a sua coleção de partituras do compositor alemão. "Ele é o meu ídolo, e talvez o maior gênio que a humanidade já produziu. Maior que Einstein", diz. Entre as partituras de sua coleção, está o fac-símile da Paixão Segundo São Mateus, música que acabou sendo a trilha sonora daquele que Roberto considera o dia mais triste de sua vida. Neste ano, no Festival de Inverno de Campos do Jordão, Roberto ensaia a Nona Sinfonia de Beethoven com a orquestra de bolsistas.
No dia do encerramento, passa a batuta a Masur. Será como uma homenagem ao maestro alemão, de 81 anos. No início do quarto movimento da Nona, os temas dramáticos ou melancólicos dos andamentos anteriores se repetem, até que irrompe a voz de um barítono: Oh amigos, não mais estes sons Cantemos algo mais prazeroso E mais alegre No ano em que consolida suas conquistas à frente da OSB, assume o Teatro Municipal do Rio de Janeiro e inaugura a Cidade da Música, Roberto, um fã de Bach, quer deixar definitivamente para trás aquela noite ao som da Paixão Segundo São Mateus.
Ele espera que o barítono da Nona Sinfonia tenha exorcizado os sons do passado, e sua carreira carioca seja empolgante e ensolarada como a explosão do coro na Ode à Alegria