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segunda-feira, abril 14, 2008

Três sopranos

A grande estrela de hoje em dia é provavelmente a russa Anna Netrebko, mas o mundo das sopranos não deixa de estar dominado por três nomes franceses: Natalie Dessay, Véronique Gens e Sandrine Piau.

Comprei uns discos recentes das três. Véronique Gens canta, para o selo Naxos, uma seleção dos “Chants d’ Auvergne” de Joseph Canteloube (1879-1957), que são uma delícia para quem associa imediatamente qualidade melódica ao poder de envolvimento da cantora que interpreta a música. Vale dizer que, à parte o refinamento e a opulência do arranjo orquestral, esses “Chants d’Auvergne” são menos eruditos do que certas coisas feitas na música popular. Mas não há como resistir aos trulilululus do dialeto regional francês que Véronique Gens gorjeia com todas as cores de um arco-íris sobre a paisagem algo pálida e medíocre, mas sempre feliz, de Canteloube.



Natalie Dessay é uma soprano mais potente, pronta a qualquer desafio técnico: basta ver, no youtube, sua interpretação da famosa “Ária dos Sininhos” da ópera Lakmé, de Delibes. Se você não tiver paciência, adiante o vídeo perto do final, para ver a qualidade sonora, a afinação, daquelas notinhas infernais que ela expele do corpo como pérolas.

Dois lindos CDs de Natalie Dessay estão à disposição do consumidor paulistano. Um reúne árias de Richard Strauss, extremamente difíceis e agudas, mas que valem a pena uma tentativa. As partes mais sublimes das óperas de Strauss foram escritas para duetos e trios femininos, e o ápice do CD está no terceiro ato de Der Rosenkavalier, reunindo num berreiro sinuoso e sensual as vozes de Natalie Dessay, Felicity Lott e Angelika Kirshlagert. É como se um caldeirão de geléia de amora gerasse, sem querer, toneladas de gordura de porco, até o momento em que a intervenção da orquestra põe um pouco as coisas no lugar. Segue-se um trio reconciliado em vozes puríssimas.

O segundo CD de Natalie Dessay se chama “Vocalises”, e é bem mais acessível. Esqueça a faixa 1, com a famosa e muito brega vocalise de Rachmaninov. As coisas melhoram na mais brega ainda “Les Filles de Cadix”, de Delibes, em que Natalie Dessay apresenta ligações surpreendentes de uma frase a outra, deixando a voz “cair” em lugares que nunca seria de esperar. Esplêndida a “Vocalise en forme de Habanera” de Ravel, e o concerto, tão brasileiro, para coloratura e orquestra do russo Glière, cujas formas de modinha podem ser conferidas aqui, com uma linda Anna Netrebko.


Mas nada disso, a meu ver, se compara ao CD de Sandrine Piau intitulado “Évocation”, que reúne canções de autores tão distantes no tempo como Chausson e Schoenberg. Véronique Gens tem pureza, Natalie Dessay tem uma técnica formidável, mas só Sandrine Piau, nos CDs que ouvi, é capaz de transcender em pura beleza vocal a partitura que tem para cantar. Desde a primeira canção de Chausson, sente-se que a voz de Sandrine Piau não é apenas “cristalina”, como se espera de qualquer soprano. No meio de uma nota, como se fosse um diamante que reflete inesperadamente um reflexo de cor, Sandrine Piau cintila.

O repertório desse CD é, além disso, de especial interesse. Debussy faz aqui uma má figura, com “Nuit d’ Étoiles”, talvez sua pior composição. Mas o relativamente desconhecido Charles Koechlin, que merecerá um post qualquer dia, surge fascinante em suas “Sept chansons pour Gladys”, que são uma espécie de ponte entre Fauré (de quem Koechlin foi aluno) e Messiaen (de quem não sei se foi professor). Não sei quem é “Gladys”, mas o compositor tinha uma enorme atração pelas atrizes de Hollywood, apaixonando-se por Lilian Harvey, a quem dedicou algumas peças sem obter resposta.
Mas Koechlin é assunto para outro post. Fico por aqui, com as fotos dele e de sua musa.


Escrito por Marcelo Coelho

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